quarta-feira, 31 de agosto de 2016

A Nogueira e o Carvalho (parte II)




   Ele ficou com a indignação e a inconformação como companhias.

   E ela fugiu com sua dor e tristezas, voltou para o seu canto solitário,onde chorou.

  Depois de tantos anos, sentiu-se tentada em sair do círculo, mas tinha medo.Medo do que fosse acontecer, por mais que seu coração pedissse ou até mesmo gritasse, ela não poderia colocar em risco as outras pessoas, porém o que ele disse fazia todo sentido, algo dentro dela começava a mudar, crescer, ganhar força.

   Ela chorou de medo até dormir.

  Passaram-se dias, ele sentiu a falta dela que não descia do galho nem para se alimentar. Ele temia que ela tivesse ido embora, pois nem seu cheiro era perceptível mais.

   No cair da tarde, viu uma coruja pousada num galho mais abaixo, e perguntou-a se havia uma onça deitada no galho acima, e sua resposta:

   -Se há,está muito bem escondida,não serei eu a cutucá-la. Lá em cima o que tem é apenas silêncio...

   Então ele foi até o Rio pegou alguma coisa e deixou ao pé da nogueira.O cheiro chamou a atenção dela que desceu e se alimentou.Quando ele percebeu que ela estava em solo,veio sorrateiro,e surgindo de repente:

   -Vejo que gostou do que eu trouxe para você!

   Ela agradeceu com um gesto suave com a cabeça, e olhando para ele perguntou:

   -Por que fez isso?

   -Porque não acho justo uma criatura como você,viver numa prisão como essa!

   -Diga-me teu nome!

   -Chama-me jacaré! -respondeu altivamente.

   Ela olhou,sorriu e subiu em sua árvore mais uma vez.

   Esta cena se repetiu várias vezes, por alguns dias...

  Os encontros eram casuais,de muita conversa e troca de afinidades. Aos poucos ele ganhou a confiança dela, alguns sorrisos e algo mais estava indo junto.Haviam dias em que ela esperava angustiadamente o sinal da presença dele, para falar-lhe do que fosse e ele também.
   As vezes assuntos banais, piadas, os dois gastavam tempo um com outro, horas conversando e nem percebiam o tempo passar.

   Numa certa noite de Lua Nova à pino, ele deitado debaixo de seu carvalho,e ela no galho mais baixo de sua árvore, conversavam como de costume:

   -Você tem sonhos? -perguntou ela.

   Ele olhou para cima,e disse:

   -Ser livre,voar...

   -E você não é?

   -Sou sim,mas é que eu queria asas...

   -Eu também... - completou suspirando e contemplando as estrelas.

  -Imagina quanta coisa pra se ver nesse céu,quantos lugares...Você já... ah! desculpa esqueci que nunca saiu daqui. Mesmo não tendo asas não me limitei ao Rio ou suas margens, vou sempre mais à diante, já cheguei até no litoral, o mar, ah! o mar... ele é lindo! Um dia te levo lá, mas não gosto de praia não, é bom à noite...

   -Deve ser lindo mesmo, as ondas toda aquela imensidão... -a medida com que ela falava seus olhos se enchiam de brilho e era nítida a curiosidade dela.

  Naquela noite,a Lua foi testemunha de algo incomum naquele canto da terra, naquele pedaço de mata, o brotar de uma semente diferente. Os dois se olhavam profundamente, e de certa forma suas almas puderam se sentir e se identificaram numa permanência irresistível, e mesmo presos a seus corpos, ela sentiu que uma coisa maior já habitava dentro dela.

  E num instante, quando ele se deu por conta estavam tão perto um do outro, que suas mãos já estavam juntas, seus rostos tão próximos que quase se enserraram num beijo muito desejado pelos dois.

   Ao perceber a proximidade, ela se assustou e fugiu. Confusa, correu para o Rio:

  -O que será de nós?! Não podemos! Pertencemos a universos diferentes...

 E em lágrimas novamente, viu as coisas se complicarem, se apavorou. Retornando à sua furtividade. Daí nos dias que se seguiram, ela tentou evitá-lo, entretanto a necessidade de falar e ouvir a voz dele era tão grande que ela não podia suportar. Fugia dele o quanto podia, trocou os horários de suas idas ao Rio, passou a caçar e se alimentar no final da madrugada.

  Por uns dias isso funcionou. E a vontade que sentia de vê-lo, falar-lhe ainda que de longe era grande e só crescia.

  Ele também a queria por perto, e discretamente a procurou como pôde, mas sabia onde ela estava, a questão era como trazê-la para o chão sem assustá-la.

   Tentou sondar com a coruja, mas ela pouco sabia. Então quis espreitá-la, montou guarda no pé da nogueira e esperou durante todo o dia, mas nada dela aparecer.

   Veio a tarde e a noite daquele dia, nem sinal dela. Subir até ela, ele não podia, ela descer também não iria, meus amigos estamos diante de um impasse...

   Embora a solução para tal fosse simples, ele receava a sua reação resolvendo esperar.
   Quando veio a madrugada, ela desceu, ele a seguiu.

  Uma noite de Lua linda no céu, estava quente, depois de comer, ela quis se banhar no Rio, ele acompanhou, e quando ela estava bem tranqüila se refrescando ele emergiu na flor d'agua;

   -Buuu! -ele disse.

   -Idiota! -resmungou assustada -O que faz aqui?

  -Vi que finalmente desceu daquela bendita árvore! O que tem lá em cima que te segura tanto? -disse isso sorrindo.

   Ela sorriu também, e mesmo que quisesse negar, não poderia pois que seu desejo era grande em vê-lo, e aquele momento descontraído no Rio fora especial. Fazia tempo que ela não ria tanto, e uma leveza tomava conta dela:

   -Você nada bem pra uma gata...

   -Somos ótimas nadadoras, predadoras em qualquer ambiente.

   -Uau...mas você não faz isso...Dizendo assim, ele submergiu ficando alguns minutos sumido, ela chamou por ele, e nada dele aparecer.De repente, eis que ele surge sob os pés dela e a ergue para fora d'água.
 
   Uma brincadeira inocente,que arrancou-lhe boas gargalhadas. A bagunça deles se ouvia de longe, despertando a curiosidade de alguns. Assim nem perceberam o raiar do dia.

   Cansados, eles sairam da água, e enquanto caminhavam para suas árvores se diziam:

   -Foi divertido, obrigada,mas aquele susto não teve a menor graça...

   -Nem seu sumiço!Faz mais isso não,ok? -pediu ele, e acrescentou -seu sorriso é tão lindo, gostei de vê-lo, sorria mais!

   Entre um sorrizinho bobo, uma resposta corada:

   -Ok!

  Ela subiu, e dessa vez quem ficou com coisas na cabeça era ele. Esse jeitinho bobo dela estava ganhando espaço dentro dele. Seu sangue frio começara a se aquecer, e o mesmo tanto que isso o perturbava, também o atiçava. Estava se encantando com ela, percebia o perigo e as possíveis complicações que poderiam acontecer, entretanto a atração entre eles era irresistível, forte demais para controlar.

   Suas cascas poderiam pertencer a mundos diferentes, porém suas almas já se conheciam por isso ficavam tão à vontade um com o outro.
 

               (continua)
























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